Morrer, renascer e escrever.


Coloquei o meu vestido preto bem passado e os brincos de pérolas que eu havia comprado há alguns anos atrás. Desde a última vez que fechei os olhos, tudo virou questões de anos.Após tanto tempo adormecida num lugar desconhecido (e lamento, não muito confortável), essa festa deveria ter bebidas injetadas de felicidade.Estou morta há algumas horas. Deixei meu corpo para minha alma não ser enterrada junto a ele.
Os olhos chorosos dos médicos mostram que depois de tanto tempo, ainda acreditavam que eu pudesse acordar e pagar as despesas que causei. Não tinha família, portanto, tudo ficaria por conta do hospital.
Eu nasci sozinha. Minhas asas foram cortadas. Ainda sonho em ser fada.

É estranho lembrar a forma como tudo era antes daqui. Antes desse lugar que não conheço, cercado de ninguém, sem endereços ou placas. Sem as reclamações vindas do meu cérebro para indicar que a voz do meu chefe era irritante e que o calor que fazia naquele escritório deveria ser uma penitência por meus erros.
Me pergunto se alguém lê as palavras invisíveis. Se alguém pode escutar meu desespero, medo e vontade de descer daqui (ou subir, dependendo da posição geográfica do lugar onde estou) pra mudar a mulher forte, de vestido preto e suas pérolas que eu deixei lá. Pra deixar um pouco da fragilidade que há aqui.
Durante esses 26 anos, reclamei durante todos eles. Chorei pelo menos 20.
O mundo era cruel comigo. Nunca tive a chance de ser bonita e ter um bom amor. Vivi romances atormentados, numa casa pequena e que nunca me satisfez. Por luxúria, avareza, gula e todos os mais mil pecados que devem estar escritos nas paredes do meu quarto, deixei as tantas virtudes por um apartamento caríssimo.
Alguém esta falando comigo. Me chamando de “próxima”.Estranho. Acho que tem mais gente aqui.Socorro. Isso é uma fila invisível.Sei disso porque esbarrei com um homem que tinha uma voz de trovão agora pouco.

E se eu estiver entrando no inferno?
Um vento gélido correu minha espinha. Havia sido uma mulher má, que nunca foi capaz de dividir ou se contentar. Mas não mereço o inferno. Fiz algumas coisas boas. Fiz algumas coisas boas como...
Acho que mereço o inferno.
Eu poderia ter usado minhas asas quebradas como motivos para correr. Afinal, eu tinha pernas. Eu poderia fazer dos meus sonhos não realizados em realidades confortáveis.Quis me arrepender. Pedi mais uma chance. Culpei o mundo pelas minhas asas cortadas, pelos meus sonhos nunca realizados e me tranquei, pouco a pouco, na fila do inferno.
Mas e se agora fosse tarde demais?
Chegou minha vez.
O ar quente veio das paredes com caixas enormes de som. O senhor voz de trovão me trouxe alguma bebida.
Havia um sol claro entrando pela janela do quarto 201. Dia dez de dezembro de dois mil e nove.
Senti um sorriso tomar conta do meu rosto. Meus olhos enxergaram além da sala negra com luzes baixas.

As nuvens desenharam “feliz um ano” no céu calmo.


Eu estava completando 27 anos, mas pelo primeiro ano da minha vida, eu tinha asas.
E pelo primeiro ano na minha vida, eu olhei pra todos aqueles sorrisos sem motivos que chamamos de felicidade. Parei de olhar pra única lágrima. Talvez eu só olhasse pra ela porque ela era única. Chamava demais a atenção.
Agora, depois do inferno, tenho um coração grande demais e nada detalhista. Capaz de amar todos esses milhões de pedacinhos por inteiro. Capaz de não olhar pra coisas insignificantes demais, como a dor. Como culpar os olhares bobos e rostos inexpressivos pelo que eu não tenho. E fazer o melhor do que eu tenho. Do que cada olhar bobo e rosto sem expressão têm.

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