Entardecer


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Sentiu as células se redobrando no seu corpo, os cabelos se desprendendo calmamente do couro cabeludo. Era uma sensação estranha, tomada por algo que não era medo, mas que ainda sim reagiria ao primeiro impulso fugindo. Sempre estivera preparada para tudo. Inclusive para isso. Para esse silêncio escandaloso do seu corpo. Mas agora, nesse exato segundo da madrugada, ela se sentia tomada por aquela sensação. Se sentia sozinha e desprotegida, como nos dias após o assalto de sua casa. Olhou para o lado e viu que as enfermeiras ainda corriam de um lado a outro do corredor e que ainda dividia o quarto com mais duas pessoas. Virou para o lado. Precisava dormir, talvez o cansaço passasse. E quando pensou na hipótese seguinte, entendeu o sentimento: era medo de nunca mais ver o sol entrando pela janela bege quando acordava cedo para ir deitar com sua mãe. Nada, naquele mundo, poderia ser mais lindo. E fechar os olhos, agora, poderia significar nunca mais ver a coisa mais linda de ser vista.
Os olhos se encheram de lágrimas. Não era o medo de perder os pais, os amigos, não era o medo do nada que viria depois. Era o desejo de ver o nascer do sol em plenas duas horas da madrugada. A gota pesada caiu sobre um botão e logo uma enfermeira veio correndo.
“Quero sol!” Ela gritava deitada na cama.
“Mas menina, o sol precisa descansar. E você também. Se não vai acordar depois dele amanhã.”
Que loucura era essa? Como poderia acordar depois do sol? Como poderia acordar?

Novamente aquela sensação estranha e sem nome tomou conta dela. Lembrou da última vez que vira o seu maior amor. Com o cabelo jogado pro lado, atravessando a rua, tomado por sol de fim de tarde. Queria ter dito que o amava tanto quanto o sol de começo da manhã e fim de tarde. Só gostava desse sol, o do resto do dia era quente e inútil. Isso a trazia uma calmaria cheia de saudade. Qualquer coisa, pensou ela. Qualquer coisa com nome que leve essa sensação.
Olhou pra TV. Nenhum filme bom, como sempre. Mas já escutava as andorinhas cantarem lá fora. A manhã estava chegando.
De repente, as andorinhas foram sumindo. Como se estivessem regredindo no tempo, como se a noite estivesse voltando calmamente e engolindo-as. Já era meio-dia. Como ela dormira tanto tempo? Mas ao contrário do hospital e das colegas de quarto, estava no meio da rua, de mãos dadas com alguma amiga, com o rosto sujo de chocolate. E todos os seus amores estavam do outro lado da rua, olhando-a cheios de ternura. Como se a estivessem esperando por anos. Mas algo estava errado. Como o sol de meio-dia aprendeu a ter tons tão alaranjados?
Os olhos se abriram de relance. Estava sonhando. E ainda estava viva.
No minuto seguinte, o sol começou a entrar pelas cortinas beges. Mas ele nunca seria tão bonito quanto se tivesse aparecido de surpresa no meio da madrugada, quando ela o esperava. O agora era resultado do desejo de antes. O depois, bem, ela já não precisava saber.
Fechou os olhos pela última vez.
Agora, o sol nasceria nela. Não para sempre. Ela continuava a odiar o depois.

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